segunda-feira, 18 de março de 2024

Suécia, Itália, a degradação da democracia

No relatório da organização Liberties, divulgado hoje (aqui), começa a haver evidências empíricas sobre o modo como a extrema-direita corrói, em países como a Suécia ou a Itália, as liberdades e o Estado de direito. O avanço da extrema-direita perdeu o ar brutal dos golpes militares. Aproveita-se da democracia liberal e do Estado de direito e, chegando ao poder, de um modo soft, vai destruindo essa mesma democracia, limitando a liberdade de expressão e desestruturando o Estado de direito. A certa altura, está-se num Estado autoritário, quase sem se dar por isso. Depois, o soft power transforma-se em hard power, com a panóplia de horrores que sempre se lhe associam. 

domingo, 17 de março de 2024

O banho de sangue

Donald Trump anuncia, em caso de derrota nas próximas eleições presidenciais americanas, um banho de sangue (aqui). Dir-se-á que se trata de uma retórica de chantagem sobre o eleitorado indeciso. Também o é, mas será mais do que isso. Os EUA estão divididos ao meio, como se fossem duas nações inimigas. Quando os actores políticos têm comportamentos como o de Trump o banho de sangue torna-se mais provável. Há uns anos ninguém acreditaria que fosse possível nos EUA a invasão do Capitólio. Ela, porém, aconteceu. O facto de Trump anunciar um banho de sangue não lhe rouba um voto e não causa qualquer escândalo nos seus apoiantes. Se Biden fizesse uma declaração semelhante, não faltariam ondas de revolta. Isto é um sinal que o banho de sangue é plausível. Neste momento, enquanto Trump for o protagonista do lado dos republicanos, tudo pode acontecer. 

sábado, 16 de março de 2024

A governação socialista

Quando se olha para a imagem que o governo entretanto caído tinha e tem na opinião pública e na comunicação social fica-se com a ideia de que estávamos numa terrível situação de crise, estávamos mesmo à beira da catástrofe. No artigo de hoje, no Público (aqui), Pacheco Pereira, militante do PSD, mostra outra coisa. Textualmente afirma: O país, cujos indicadores económicos, financeiros e sociais (sic) foram bastante bons, e verificados internacionalmente (sic) não entrava nas notícias e nos comentários, assim como as chamadas de atenção para a "normalidade" de Portugal, mesmo no meio das "crises" por comparação com a Europa, não encaixavam na norma das agendas circulantes." 

Houve, muitas vezes, displicência nos governos de António Costa, é um facto. Contudo, os seus governos viveram sempre acossados, começando no início, com as espúrias exigências de Cavaco, como se ele tivesse direito de se substituir à Assembleia da República, passando, depois, por Marcelo Rebelo de Sousa, cuja proximidade de António Costa nunca deixou de ser instrumental, e acabando - o factor fundamental - no comunicação social, toda ela na mão da direita e com um agenda política muito vincada. Ora, nem a displicência socialista nem o cerco a que os seus governos foram sujeitos evitaram que os resultados das governações socialistas fossem reconhecidos, internacionalmente e de modo independente, como bons, se não mesmo como exemplares, apesar das "crises", isto é, da pandemia da COVID-19 e da guerra na Ucrânia.

No post de ontem, falou-se sobre a fuga dos eleitores socialistas para o Chega ou a vergonha daqueles que permaneceram fiéis. Existirão várias razões para esses dois fenómenos, mas uma das principais estará na campanha sistemática, desde a primeira hora, que a comunicação social lançou contra a governação socialista. Como Pacheco Pereira salienta, casos isolados eram trabalhados, na comunicação social, para darem uma imagem de caos. E isso acontecia sistematicamente. Por outro lado, os bons resultados eram minimizados. Não bastará, na governação, a esquerda obter bons resultados e reconhecimento independente, terá de aprender a viver com uma comunicação social completamente adversa e com um comentariado político na mão da direita. Terá de aprender a viver num ambiente comunicacional que trocou, há muito, a independência pela militância e, não poucas vezes, pela milícia.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Os eleitores socialistas

Começam a sair os dados dos inquéritos feitos à boca das urnas nas eleições de domingo (ver aqui). Há dois dados interessantes relativamente aos eleitores do Partido Socialista. É já claro que uma parte da perda de votação socialista se deve à transferência de votos para o Chega. Este dado é plausível, pois, entre o eleitorado dos partidos tradicionais (CDS, PSD, PS, PCP e BE), o eleitorado socialista é o menos consistente ideologicamente, embora tenha um bom stock de eleitores fiéis. A maioria dos eleitores dos partidos tradicionais à direita do PS são consistentemente de direita, assim como os eleitores à esquerda do PS são consistentemente de esquerda. A massa eleitoral do PS, porém, é aquela que não é uma coisa nem outra e, não tendo consistência ideológica, não vê razão que a impeça de transferir o seu voto do PS para o Chega, como já o fizera, em menor medida, para o Bloco de Esquerda. 

Outro dado interessante é o dos eleitores fiéis aos socialistas. António Salvador, director-geral da empresa de sondagens Intercampus, fala em espiral de silêncio dos eleitores socialistas, coisa que em 30 anos nunca tinha visto. Muitos não quiseram participar nos inquéritos. Segundo Salvador, as pessoas tinham vergonha de dizer que iam votar PS. Segundo ele, as razões seriam um misto de desconforto, desilusão e dúvida. 

Estes dados deveriam ser lidos com muita atenção pelos dirigentes do PS. Como foi possível que em dois anos uma fatia substancial dos eleitores socialistas se tenha transferido para a extrema-direita? Que razões levam o eleitor socialista fiel a ter vergonha da sua fidelidade? Seria bom para o PS - e para a democracia em Portugal - que o partido olhasse para a sua cultura política, para o modo como conduz a sua acção, e se interrogasse sobre se não chegou a altura de mudar o modo, sobranceiro e displicente, como se tem relacionado com o poder.

quinta-feira, 14 de março de 2024

A derrota do liberalismo

Um dirigente do PSD, Miguel Pinto Luz, em entrevista ao Público (aqui), usa uma frase interessante em relação ao eleitorado do Chega. A certa altura diz: temos de ter cuidado com essas pessoas e temos de acarinhar esse eleitorado. Palavras como cuidado e acarinhar pertencem ao campo do afecto e não ao campo político. A frase é, na verdade, a confissão de uma impotência transversal aos partidos da governação. Os eleitores do Chega estão zangados com o sistema, mas a razão dessa zanga é bem mais profunda e complicada de resolver do que parece. A lógica das governações liberais - sejam mais à direita, sejam mais à esquerda - colide com a expectativa daqueles que se sentem zangados.

As governações e os governantes liberais (sejam do PSD ou do PS) esperam que os cidadãos, usufruindo da liberdade, façam alguma coisa pela sua vida. Os cidadãos zangados, pois a vida não lhes corre como desejam, esperam que o Estado faça alguma coisa por eles. O crescimento do Chega funda-se neste conflito silenciado, por uns e por outros. Os seus eleitores - não todos, claro - julgam que o Estado deve cuidar deles. Os que ocupam o Estado fazem-no numa lógica em que, para além de um mínimo, cada um terá de cuidar de si mesmo. 

As palavras de Miguel Pinto Luz são eloquentes, pois manifestam a perplexidade de um político liberal perante uma votação que não foi outra coisa se não um pedido de instauração de uma república assistencialista, um retorno a um forte poder pastoral, para citar Michel Foucault. Certamente o que um dirigente do PSD gostaria de dizer seria: tomem em mão a vossa liberdade e façam alguma coisa por vós, tenham iniciativa (foi o que, em tempos, disse Passos Coelho). Perante a falência do espírito liberal representada pelo eleitorado do Chega, resta-lhe falar em cuidar e acarinhar o rebanho. A votação no Chega foi uma votação contra o liberalismo, contra essa ideia de que cada um é responsável por si mesmo.

quarta-feira, 13 de março de 2024

O PCP e a rejeição do novo governo

O Partido Comunista, através do seu secretário-geral, afirmou hoje que vai avançar com uma moção de rejeição ao futuro governo. Na verdade, a moção de rejeição não se destina a evitar que o próximo governo entre em funções, mas é uma tentativa de colar à direita tanto o PS como qualquer outro partido da esquerda que não vote a moção comunista. Esta é uma lógica reconhecível no Partido Comunista, pois, com raras excepções, ela vem de há muito. É plausível que o PCP não associe esta estratégia ao seu declínio eleitoral e social. Preso a uma lógica férrea de divisão entre direita e esquerda, fala e age para o seu grupo restrito, cada vez menor. Imaginar-se-á o campeão da esquerdidade, digamos assim, mas isso não acrescentará um grama à sua influência política, podendo mesmo fazê-la diminuir. Toda a esquerda está numa situação difícil e precisa de muita imaginação para encontrar um caminho, num momento em que é claramente minoritária no parlamento. Parece que os comunistas não estão interessados nisso. 

terça-feira, 12 de março de 2024

Eleições e pensamento mágico

Este post do blogue Der Terrorist (ver aqui) é um retrato impressionista, mas interessante, que ajuda a explicar a enorme votação no Chega e, também, o facto de ela ser acompanhada por um princípio de esperança. A paisagem humana descrita é aquela que em tempos teria votado no Partido Comunista, caso estivéssemos no ambiente político e social de há 20 ou 30 anos. Há neste retrato duas imagens significativas. 

A primeira diz respeito à desconfiança perante os princípio liberais que regem a nossa economia. Essa desconfiança não se manifesta em relação à economia de mercado, mas aos actores políticos que a defendem - PS e PSD - que são vistos como a causa da desgraça das pessoas comuns. A segunda é a perda de esperança nos métodos tradicionais do sindicalismo corporizado pelo PCP e na própria ideologia da esquerda tradicional com o seu arsenal de apelos à luta de classes.

As pessoas não querem amanhãs que cantem, querem hojes em que vivam bem, querem deixar a sua condição social, havendo, claramente, no voto no Chega um elemento de pensamento mágico. André Ventura é o feiticeiro que, com uma varinha mágica, os tirará da situação em que estão, mesmo que tenham pouca instrução e poucas qualificações. Olham para ele não como um político, mas como um mágico. 

Escutam em êxtase aquele discurso que reproduz o deles e não conseguem ver os interesses que se movem por detrás da capa do mágico ou dentro da sua cartola. Não conseguem perceber que por detrás do mágico estão aqueles que beneficiam da sua actual condição, não conseguem perceber que não existe qualquer varinha mágica que os possa socorrer. Mais, não conseguem perceber que uma vitória do mágico está longe, muito longe de ser a vitória deles. Ninguém os salvará.